terça-feira, 18 de março de 2014

as cronicas de millor fernandes




BiografiaMilton Viola Fernandes, Millôr (Rio de Janeiro RJ 1923¹ - idem 2012). Cartunista, jornalista, cronista, dramaturgo, roteirista, tradutor e poeta. Órfão de pai aos 2 anos e de mãe aos 11, desde muito cedo começa a trabalhar. Em 1938, aos 15, emprega-se na revista O Cruzeiro como contínuo, passando a trabalhar no arquivo da publicação após vencer um concurso de contos de outra revista, A Cigarra - para a qual colabora a partir do ano seguinte, assinando, com o pseudônimo Vão Gôgo, uma coluna fixa. Retorna a O Cruzeiro em 1943, participando da renovação editorial, que eleva a circulação da revista de 11 mil para 750 mil exemplares semanais. Nessa publicação, Vão Gôgo tem a seção O Pif Paf - que em 1964 dá título à revista quinzenal considerada o início oficial da imprensa alternativa no Brasil, devido à oposição ao regime militar. Essa revista é, por isso, fechada pelo governo no oitavo número. Seu primeiro livro, Eva sem Costela - Um Livro em Defesa do Homem, é lançado, com o pseudônimo Adão Júnior, em 1946. E a primeira peça, Uma Mulher em Três Atos, é encenada em 1953, pelo Teatro Brasileiro de Comédia (TBC), em São Paulo. Tendo já utilizado o próprio nome como autor de teatro, passa a assinar sua coluna em O Cruzeiro como Millôr Fernandes, em 1962. Participa, em 1969, do grupo fundador de O Pasquim, semanário que se torna o porta-voz da oposição ao regime militar. Como cartunista, colabora nos principais órgãos da imprensa brasileira; como cronista, tem mais de 40 títulos publicados; como dramaturgo, alcança sucesso com Liberdade, Liberdade (1965), em parceria com Flávio Rangel (1934 - 1988), Computa, Computador, Computa (1972) e É... (1977). Atua ainda como artista gráfico, expondo trabalhos em várias galerias de arte do Rio de Janeiro e no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro (MAM/RJ). Entre as adaptações que realiza para o teatro, destacam-se a versão musical do romance Memórias de um Sargento de Milícias, de Manuel Antônio de Almeida (1831 - 1861), encenada por atores negros em 1966, e da peça Deus Lhe Pague, de Joracy Camargo (1898 - 1973), encenada no Rio de Janeiro com músicas de Edu Lobo (1943) e Vinicius de Moraes (1913 - 1980). É um dos mais solicitados tradutores de teatro do Brasil.
Comentário CríticoEm crônicas, peças teatrais e poemas, Millôr Fernandes vale-se do humor com o objetivo de criticar a forma como o poder se organiza e a maneira naturalizada como as relações de dominação são percebidas pela sociedade. O meio privilegiado para isso é a recriação de usos cotidianos da linguagem, para que o distanciamento provoque no leitor a reflexão sobre situações normalmente banalizadas.
Em O Capitalismo Mais Reacionário, crônica de 1945, o autor apresenta um breve diálogo entre Patrão e Empregado. Este, decidido a "falar seriamente" com o Patrão, diz-lhe que em 40 anos de empresa comete apenas um erro. Em vez de reconhecer o trabalho do funcionário, Patrão lhe responde: "... de agora em diante tome mais cuidado". O humor se dá, aqui, pelo exagero no traço dominador do empregador, sempre disposto a exigir mais e mais dos trabalhadores.
O uso do hiperbólico é frequente nas crônicas do autor, bem como a paródia de linguagens técnicas ou especializadas. Este é o caso de Poesia Matemática, de 1949, em que o personagem Quociente se apaixona por Incógnita. O amor à primeira vista conduz ao casamento, que depois é ameaçado pela chegada do Máximo Divisor Comum e a consequente instalação de um triângulo amoroso. O narrador conclui: "Mas foi então que Einstein descobriu a Relatividade / E tudo que era espúrio passou a ser / Moralidade / Como, aliás, em qualquer / Sociedade".
A transformação do convencional em situações aparentemente absurdas se faz presente em diversos momentos da obra de Millôr. A educação das crianças, por exemplo, é satirizada em O Filho Prodígio (de Lições de um Ignorante, 1963), com base em discurso de um menino. Ao cair de uma árvore e diante do desespero da mãe, ele diz: "Espero que isto me sirva de lição". Ao receber dinheiro do pai para comprar livros, afirma: "Na minha idade o senhor já ganhava a vida sozinho". Emissor e receptor trocam de papéis nessa paródia dos estereótipos, retratando as formas cristalizadas da relação entre pais e filhos.
O universo infantil, com seu ponto de vista que gera típicas deformações na linguagem, é especialmente caro ao autor, em textos cujo efeito cômico e satírico põe em evidência fatores dificilmente apreendidos pela percepção usual. Compozissõis Imfãtis, de 1975, arrola tipos como o garoto violento, o menino estudioso e a professora por quem todos se apaixonam, ironizando a visão idílica dos primeiros anos de vida ao apontar os sofrimentos implicados em toda relação.
O cerne daquilo que o autor deseja evidenciar e atacar torna-se patente em um breve trecho de A História É uma História, texto dramático levado ao palco em 1976. O enredo, que abarca toda a história da humanidade - desde a criação do universo até a década de 1970 -, compõe-se a partir da afirmação de sua própria arbitrariedade: "Os personagens históricos [...] são todos inventados", e os elementos de cena, "de mentira". Sugere-se, consequentemente, a arbitrariedade na forma como a história é transmitida. Ao narrar a invenção da roda, um personagem afirma: "Que interessa uma roda rodando? A ideia verdadeiramente genial foi a de colocar uma carga em cima da roda e, na frente dela, puxando a carga e a roda, um homem pobre". Nega-se, com isso, que a invenção por si só represente desenvolvimento, indicando que os considerados avanços da humanidade têm como força motriz, na realidade, a dominação do homem pelo homem.
Se nas crônicas os recursos tradicionais se combinam com elementos de vanguarda, na produção para o teatro a mescla se dá entre a paródia e o lirismo, o farsesco e a documentação histórica, a comédia de costumes e a denúncia social. Seja nas peças militantes - como Liberdade, Liberdade (1965), mais interessadas em apontar os efeitos do autoritarismo sobre o indivíduo -, seja em outras que, como Duas Tábuas e uma Paixão (1982), investem contra o estereótipo do teatro social, o dramaturgo está sempre a propor que os espectadores rompam com as visões de mundo cristalizadas.
No que diz respeito aos recursos linguísticos, Millôr emprega procedimentos clássicos para a obtenção do humor. Trocadilhos, eufemismos, antíteses, ambiguidades e duplo sentido das palavras são explorados com frequência, compondo frases sintéticas, que condensam o pensamento do autor. A respeito da política brasileira, afirma: "Nas noites de Brasília, cheias de mordomia, todos os gastos são pardos", em que "gastos" substitui os "gatos" do provérbio. Outras máximas invertem lugares-comuns, como "um desses livros que quando você larga não consegue mais pegar", ou esvaziam o sentido metafórico de pensamentos populares: "Entre o riso e a lágrima quase sempre há apenas o nariz". Há, ainda, seus conhecidos dicionários, em que se operam modificações no sentido das palavras ou se criam vocábulos a partir de sutis deslocamentos. É o caso, por exemplo, de "comichão", aquele que "devora terra"; "destroços", "uma dezena de coisas"; "desabrotoar", "desabotoar um broto"; "caligrafeia", "letra ruim".
Nos diferentes gêneros praticados pelo autor, seu programa está sempre conforme ao que afirma no artigo Pensadores Humoristas: "O riso explode, à primeira vista, quando uma grande verdade social é denunciada de maneira clara e comunicativa".

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